domingo, 14 de junho de 2015

Um luto de 1000 cores

"Poema de 1000 cores para que uma amiga se cure depressa"
Por Paulo Galindro
Técnica mista sobre MDF
Março de 2010



A Manuela no atelier da nossa querida amiga Mariola Ladowska,
num momento de felicidade plena, há umas semanas atrás

Mesmo quando tudo já parecia perdido,
encontrou - nem imagino onde - força anímica para começar uma nova tela



A morte é a curva da estrada,
Morrer é só não ser visto.
Se escuto, eu te oiço a passada
Existir como eu existo.

A terra é feita de céu.
A mentira não tem ninho.
Nunca ninguém se perdeu.
Tudo é verdade e caminho.

Fernando Pessoa



Este vai ser um post doloroso, daqueles que dói bem fundo escrever. Mas ao fazê-lo, quero de alguma forma operar dentro de mim o processo alquímico de transformar o chumbo da dor da ausência no ouro da aceitação de que o ciclo da vida é mesmo assim, e que tudo acontece como deve acontecer. E que quando tudo acontece como deve acontecer, está tudo bem, e isso é bom.


Quero falar-vos de uma grande, grande amiga. Na verdade não é a primeira vez que o faço... já noutra altura o fiz, preservando no entanto o seu anonimato sob a forma de um glorioso M maiúsculo, porque a ética e a intuição assim mo ditaram no momento.

Mas hoje... hoje quero falar-vos alto e a bom som da MANUELA. E não, as maiúsculas a as cores não são acidentais. Não encontro, de momento, outra forma mais efectiva e afectiva de falar de uma pessoa que me é maiúscula e superlativa, do que carregar na tecla Caps Lock sempre que a ela me referir.

A MANUELA gostava de arte. Não como mera observadora, que a MANUELA nunca foi de ficar de fora aquilo que gostava. Como em tudo na vida, a MANUELA mergulhou de cabeça na arte, e em todas as suas expressões... tudo serviu para pôr cá fora o arco-íris que vivia dentro dela.

A MANUELA adorava a música e os livros. E acima de tudo, vibrava com os silêncios entre as notas e os espaços entre as palavras. Porque é aí que se escondem tesouros inomináveis.

A MANUELA sabia amar como ninguém a família e os amigos, a quem nunca poupava palavras de conforto e de aconchego, mesmo quando, tantas vezes, cortinas de veludo vermelho ameaçavam encerrar o espectáculo da sua vida.

A MANUELA também amava assaralhopadamente (haverá outra forma de amar) os animais, especialmente aqueles que não se podem defender do mais cruel de todos eles. Se na sua casa viviam gatos e cães - muitas vezes tirados da rua - em sonora harmonia, no seu coração vivia uma Arca de Noé inteirinha, botes salva-vidas e âncora incluídos.

Inconscientemente, todos os que rodeavam a MANUELA (e eram muitos, que por ela se sentiam atraídos tal como uma borboleta se sente atraída por uma fonte de luz) intuíam de algum modo que estavam perante um Espírito antigo, sábio, portador de uma Luz e de um Conhecimento só acessível aqueles que por cá andam há muito, muito tempo. Gosto de pensar nela como um Boddisatva... aquele(a) que se recusa a Avançar enquanto ainda existir alguém que fique para trás.

A MANUELA foi uma guerreira que durante anos lutou contra um assassino silencioso que, alguém num dia pouco inspirado apelidou injustamente de Câncer... caranguejo em latim. Sempre senti que há algo de irónico em se usar tão maravilhosa manifestação de vida para se designar uma maldita doença que nos corrói a força vital. Mas enfim... quem sou eu para pôr em causa opções destas. Embarquemos então nessa metáfora. A MANUELA lutou corajosamente contra um monstro que fechou as tenazes em torno do seu corpo, com a firme intenção de nunca mais a largar. Contudo, durante essa luta feroz, implacável e desigual, a MANUELA jamais perdeu a força imparável do seu sorriso luminoso, o seu olhar sensível para a Beleza Interior dos outros e um sentido de humor perspicaz e afinado ao milímetro. Essas foram as suas derradeiras armas. As armas com que ganhou muitas batalhas. Sabem... vezes sem conta, tive o privilégio de a ver a desferir uns valentes xutos e pontapés nesse monstro invisível. Por vezes pela força das suas palavras, muitas vezes pela força dos seus gestos corajosos e desconcertantes.

"Não te preocupes amigo, que ainda não carimbei o passaporte! Se a morte pensa que me vai levar sem ter muito trabalho, está muito enganada!"

... uma das frases que dela mais ouvi nos últimos dias, quando lhe perguntava como se estava a sentir, entre emplastros de morfina e muitos outros medicamentos que nos subtraem da dor, mas também do sentir da vida.

Na passada quinta-feira, 11 de Junho, durante a noite, e após uma semana sem fim de infindável sofrimento, a MANUELA finalmente "carimbou o seu passaporte" para a Grande Viagem. Não sem antes todos aqueles que a amavam se despedirem condignamente. Serenamente. Como deveria ser sempre.

São assim as pessoas-farol. Inesquecíveis.

Não te digo adeus, Amiga, porque sei que agora, mais do que nunca, estás em todo o lado. E se estás em todo o lado, estás junto a nós.

Como disse Carl Sagan no seu belo "Cosmos", diante da vastidão do espaço e da imensidade do tempo, foi uma alegria para mim ter partilhado um planeta e uma época contigo.




Obrigado.








1 comentário:

deep disse...

Uma homenagem bonita, Paulo. É assim que devemos lembrar as pessoas que fizeram a diferença nas nossas vidas, reconhecer as coisas e os momentos bons, para que a tristeza não nos apanhe.

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